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Dos rábulas trambiqueiros à defesa legal

Prejudicaram tanto os pobres colonos que resgatar o respeito aos advogados exigiu a união da classe acima da polarização política
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Por: Alceu Speranca - Jornalista e escritor

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Dos rábulas trambiqueiros à defesa legal

Prejudicaram tanto os pobres colonos que resgatar o respeito aos advogados exigiu a união da classe acima da polarização política  
José Munhoz de Mello, biografia gigantesca abordada em livro. Otacílio Ribeiro e Arnaldo De Bona brigavam quando apareceu uma arma em cena

A morte do desembargador José Munhoz de Mello, criador das Comarcas de Toledo e Cascavel, em 22 de setembro de 1994, trouxe ao ambiente jurídico oestino as memórias doloridas de um tempo em que os colonos eram esbulhados de todas as formas.

Prejudicados por atravessadores que exploravam os produtores mediante trapaças e especulações, ou por rábulas, trambiqueiros que se diziam advogados e os lesavam até com perdas patrimoniais, os colonos, com pouca instrução e escassos recursos, pediam uma Justiça mais próxima.

A criação das Comarcas veio com a lei 1.542, de 14 de dezembro de 1953, com instalação prevista para quando os dois municípios providenciassem os respectivos fóruns e meios para hospedar os juízes designados. Munhoz de Mello autorizou as Comarcas em 9 de junho de 1954, na presença de outro ilustre membro da família: o governador Bento Munhoz da Rocha Neto.

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Foi nesse dia, aliás, que o governador chamou a população de Cascavel para uma tomada de decisão sem precedentes. Bento oficializou o nome de Cascavel na lei 790/51, mas havia uma intensa polêmica em torno do nome da cidade e Município: alguns religiosos influentes pretendiam que fosse “Aparecida dos Portos”, como foi batizada em 1931 pelo prelado Guilherme Thiletzek, de Foz do Iguaçu.

Bento propôs resolver naquele dia, aproveitando a presença da população convidada para a inauguração do Fórum, qual deveria ser o nome definitivo da cidade: “Cascavel”, “Aparecida dos Portos” ou “Aparecida do Oeste”. Venceu a primeira por aclamação.

Família do Juiz rejeitou Cascavel

Outro fato incomum foi a ausência do juiz designado para assumir a Comarca de Cascavel, Aurélio Feijó. Ele não conseguiu convencer a família a vir para o interior do Estado, mas deixou o Fórum organizado. Em seu lugar, Munhoz de Mello oficializou o juiz substituto Epiphânio Figueiredo.

Ao instalar o Fórum que hoje tem seu nome, o desembargador Munhoz de Mello dava sua resposta às queixas dos colonos, que sentiam dificuldades para encaminhar as demandas a Foz do Iguaçu ou Curitiba, habitualmente prejudicados por rábulas, pretensos advogados que lesavam os cidadãos e logo desapareciam.

Se nos anos 1950 os rábulas haviam emprestado má fama aos profissionais do Direito, nos anos 1960, devido ao golpe de Estado que instaurou a ditadura, os advogados se sentiam inseguros pela perseguição que sofriam ao defender pessoas presas sob a arbitrária suspeita de serem oposição ao governo.

Havia muita agitação em todo o país e Cascavel ainda vivia o período “áureo” dos conflitos fundiários. Os jagunços, ora como empregados de colonizadoras, ora como auxiliares da Polícia, faziam parte dos cenários urbano e rural, acumulando imposições, ameaças e crimes impunes.

13 advogados sob suspeita

Para culminar, os 13 advogados que militavam em Cascavel sofriam com a suspeita de que seriam só “bons de conversa”. Ao chegar sequer encontravam casas e escritórios para alugar, como conta o advogado Arnaldo De Bona: “Vinham aqueles advogados de fora que davam golpes e iam embora. E sobrava para nós a discriminação da comunidade”.

Para valorizar a atividade profissional advocatícia, De Bona e outros colegas se reuniram para organizar uma entidade representativa. Sabiam que a união da classe era imprescindível, embora estivessem divididos entre apoiadores e opositores à ditadura,

O encontro foi no escritório de Arnaldo De Bona, no prédio da Loja César, defronte ao Fórum Desembargador José Munhoz de Mello, que um ano depois seria criminosamente queimado, na Travessa Willy Barth, atualmente Jarlindo João Grando.

Adequada ao clima reinante na época, a confusão começou já na montagem do estatuto da entidade. Ao cabo de várias reuniões, os desentendimentos surgiram e muitas brigas aconteceram impedindo um texto consensual.

Discriminados e desunidos, os advogados tentaram uma última reunião em clima tenso. Depois de uma discussão exaltada sobre as normas estatutárias envolvendo os advogados Octacílio Ribeiro da Silva, Epiphânio Alves de Figueiredo e De Bona, caiu do bolso deste último uma pistola Beretta.

“Os doutores De Bona e Octacílio Ribeiro brigaram, estavam discutindo, e caiu, improvisadamente, é claro, um revólver”, contou o advogado Alcides Pereira. “Eu quis esconder o revólver para não dar mais agitação. Pisei em cima, mas não adiantou”.

Revólver estratégico

O incidente ocorreu justamente quando o bate-boca mais se inflamava. Um misto de incômodo e temor logo tomou conta dos advogados presentes. Havia a iminência de um tiroteio, até porque Octacílio Ribeiro tinha a fama de pavio curto.

Foi aí que alguém decidiu achar a coisa engraçada e tudo ficou por isso mesmo. “No fim tudo virou gozação, pois todos viram que foi sem querer que a arma caiu”, justificou-se Arnaldo De Bona.

Mesmo assim, até hoje há quem julgue a queda da arma um feito providencial, uma espécie de cartada “estratégica” para mudar o rumo do conflito em torno dos estatutos.

De fato, depois de quase um ano de discussões e brigas – Antônio Tomé e Octacílio também se atritaram, com o primeiro chegando a rasgar um projeto de estatutos – foi na reunião do revólver, em 22 de julho de 1967, criada a Associação dos Advogados de Cascavel, o embrião da futura Subseção de Cascavel da Ordem dos Advogados do Brasil.

Essas histórias do Poder Judiciário em Cascavel são contadas em quatro livros (https://x.gd/ptd9J) detalhando as dificuldades dos juízes que conseguiram vir ao interior sem os recursos presentes nas grandes cidades e dos advogados profissionais que abriram mão de clientelas amplas em grandes centros para apostar no desenvolvimento do Oeste.

O destaque maior coube ao desembargador José Munhoz de Mello, ao permitir a Justiça mais presente na região, sobretudo como o agravamento das disputas entre jagunços e posseiros.

Uma biografia como poucas

Nascido em Curitiba, em 3 de junho de 1912, José Munhoz de Mello começou como funcionário de ferrovia e logo, ainda estudante, a servente do cartório do Tribunal de Justiça, formando-se em 1933 pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

Foi promotor público em Araucária e depois nas comarcas de Mallet, Reserva e Tibagi. Foi juiz municipal de Mallet e em 1940 assumiu a Comarca de Foz do Iguaçu, seu primeiro e impactante contato com o Oeste.

Removido para Londrina, em maio de 1945 pediu exoneração para assumir a Promotoria Pública. Foi prefeito de Londrina em 1945, deputado federal constituinte de 1946 e como desembargador apresentou o anteprojeto de Organização Judiciária, convertido em lei.

Nomeado desembargador em fevereiro de 1948, presidiu o Tribunal de Justiça do Paraná durante a gestão 1953/1958, em cuja função foi autor da reforma administrativa do Poder Judiciário do Paraná.

Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná, também desempenhou várias atividades outras, como a de membro da Comissão Especial incumbida de analisar e apresentar sugestões aos anteprojetos do Código Eleitoral e Estatuto dos Partidos Políticos, em 1965.

Uma janta ou terrenos no centro?

No governo do Paraná, Mello foi secretário do Interior e Justiça e da Segurança Pública, elaborando os anteprojetos de Estatuto da Polícia Civil e da Constituição do Estado de 1967.

Como professor, fundou a Faculdade de Direito de Curitiba e a Faculdade de Direito da Universidade Católica do Paraná. Teve também presença marcante como chefe do Departamento de Direito Público e do Setor de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Paraná, da qual assumiu a coordenadoria do Curso de Direito.

José Munhoz de Mello ainda foi presidente da Associação dos Servidores Públicos do Estado do Paraná e da Comissão de Alto Nível que elaborou o anteprojeto do Estatuto Penitenciário do Paraná, em vigor em 1973.

A história da criação da Comarca de Cascavel é o ponto central do livro Quando a Justiça Vale uma Janta, que expõe a personalidade marcante do desembargador. Em sinal de agradecimento por criar a Comarca de Cascavel apesar de obstáculos que a faziam inviável, a Prefeitura quis presenteá-lo com imóveis localizados próximos à Catedral.

Ele não aceitou o mimo para que não parecesse cobrança por um serviço prestado. Do episódio restou só a inocente história da janta, contada pelo prefeito José Neves Formighieri.

A primeira família: o começo do turismo na fronteira

A empresa Nuñes y Gibaja se tornou a principal divulgadora da beleza das Cataratas do Iguaçu, praticamente iniciando a exploração comercial do turismo na região, mas o obragero franco-argentino Domingo Barthe preferiu um caminho diferente: ampliar a parceria com brasileiros influentes.

Ele iria se aliar ao coronel Manoel José da Costa Lisboa na aquisição de uma área que no futuro seria muito cobiçada e objeto de interesse para grileiros e posseiros. Um título provisório que assegurava direito a 10 mil hectares de terras devolutas comprados nas áreas de Entre Rios, Paz e Tormenta, então situados na porção Oeste do município de Guarapuava, que se estendia até o Rio Paraná.

Também nessa época, em 1902, Manoel Costa Lisboa transferiu ao sócio franco-argentino Domingos Barthe todos os direitos da propriedade cuja compra ele intermediara junto ao governo brasileiro, permitindo também a Barthe iniciar sua própria obrage, além de explorar a navegação fluvial e o turismo.

A essa altura, os fios telegráficos já alcançam Catanduvas. Ali, onde os militares fizeram uma primitiva plantação em 1889, surgia uma estação telegráfica e o início da vila. A ação governamental avançará para o Oeste mais acelerada a partir daí.

Vinte anos depois chegaria a primeira família a se estabelecer em Cascavel.

 

Catanduvas: último posto de abastecimento antes da viagem à fronteira Crédito: Edison Caetano

 

 

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