A cidade de Cascavel enfrenta uma crise em sua segurança viária, com índices de acidentes e mortes que chamam atenção e exigem ações urgentes. Em uma audiência pública realizada no início do mês, comunidade e autoridades se uniram para debater e impulsionar a criação e instalação de uma Delegacia Especializada em Delitos de Trânsito (Dedetran) para o município. A iniciativa, proposta pelo vereador Hudson Moreschi e pela Comissão de Segurança Pública e Trânsito, é vista como uma medida “necessária e urgente” para conter a escalada de tragédias e garantir justiça às vítimas.
Os números apresentados durante a audiência revelam um cenário sombrio. De janeiro a maio de 2025, Cascavel registrou 27 mortes ocasionadas por acidentes de trânsito, sendo oito na área urbana e 19 nas rodovias que cortam a cidade. A Transitar, órgão municipal de fiscalização de trânsito, revelou que, no mesmo período, a cidade contabilizou mais de 2,3 mil acidentes, resultando em mais de 500 pessoas que sofreram algum tipo de trauma e necessitaram de atendimento de saúde.
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) somou a essa estatística, informando que, de janeiro a junho de 2025, sua circunscrição em Cascavel registrou 36 óbitos em 383 acidentes graves.
O deputado estadual Batatinha, presente na audiência, classificou os dados como “alarmantes”, sublinhando a gravidade da situação. A proporção dos acidentes de trânsito em Cascavel, inclusive, chega a ser maior que a de Curitiba considerando dados proporcionais, e o município já registrou neste ano mais mortes no trânsito do que Joinville, cidade catarinense que tem quase dobro de habitantes que Cascavel.
Para Dr. Lauri, vereador e advogado criminal, as ruas de Cascavel, pela sua própria geografia, são “convidativas à velocidade”, o que agrava o problema. O cenário atual é insustentável, e a cidade, que cresceu e se desenvolveu, chegou a um ponto em que a especialização se torna imperativa.
A fragilidade da investigação atual e a força da especialização
Um dos pontos mais debatidos na audiência foi a insuficiência da estrutura atual para lidar com a complexidade dos crimes de trânsito. O delegado Edgar Dias Santana, da Dedetran de Curitiba, apresentou o modelo da capital como um exemplo de sucesso. Sua unidade, que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, garante que qualquer homicídio de trânsito na cidade de Curitiba tenha uma equipe policial no local imediatamente. Essa celeridade na coleta de provas é crucial, pois imagens de monitoramento e depoimentos de testemunhas podem desaparecer ou ser alterados em questão de dias. Graças a essa metodologia, a Dedetran de Curitiba alcançou índices de elucidação superiores a 90% das mortes de trânsito nos últimos três anos, sendo que mais de 88% foram solucionados nas primeiras 48 horas. Um caso emblemático envolvendo um acidente grave com um motorista embriagado ilustrou como a presença imediata no local permitiu a descoberta de provas que seriam perdidas, como a comanda de consumo de bebidas alcoólicas do infrator.
Em contrapartida, o delegado-chefe da Polícia Civil de Cascavel, Rubens Miranda Júnior, reconheceu as limitações locais. A Polícia Civil de Cascavel, apesar de seu trabalho valoroso e dos elogios de parlamentares, opera com um efetivo que “não consegue dar atenção devida” aos crimes de trânsito, pois os delegados e investigadores “cuidam de várias outras naturezas jurídicas”. O delegado salientou que, se a nova delegacia for criada “nos mesmos moldes” dos setores de trânsito de Maringá e Londrina – que acumulam outras responsabilidades – haveria limitações, pois não haveria corpo suficiente para atender à demanda integralmente.
O promotor de justiça Alex Fadel reforçou a necessidade de uma delegacia especializada para produzir “provas técnicas imediatas”. Ele citou um caso recente no qual um juiz absolveu um réu por falta de provas sobre excesso de velocidade, pois o testemunho de um agente de trânsito não foi considerado suficiente pelos tribunais superiores. Para o promotor, se passar tempo demais, provas vão se perdendo. A OAB de Cascavel, por meio de seu representante Paulo Boarque de Souza, também manifestou apoio integral à proposta à criação da Delegacia específica, destacando que a falta de uma estrutura técnica adequada nas delegacias comuns acarreta “morosidade”, fragilidade probatória” e, lamentavelmente, “impunidade”.
O grito das vítimas e o colapso do sistema de saúde
A necessidade de uma Dedetran em Cascavel transcende as estatísticas; ela se traduz na dor de famílias como a de Mônica Morais de Souza que perdeu o filho em um atropelamento na calçada. Ela relatou ter esperado 16 horas para receber o corpo do filho, enquanto o caso já havia sido classificado como culposo em menos de 24 horas, sem a realização de perícia científica ou coleta de testemunhos. Mônica descreveu o inquérito de seu filho como “frágil”, uma realidade que ilustra a urgência de investigações ágeis e especializadas. Sua experiência pessoal ressaltou a falta de um fluxo claro de apoio e informação para as famílias das vítimas, que muitas vezes se sentem desamparadas e sem saber a quem recorrer.
Além do impacto emocional e social, os acidentes de trânsito impõem uma pressão “muito grande” e “constante e permanente” ao já sobrecarregado sistema de saúde pública. Rubens Griep, diretor da 10ª Regional de Saúde, informou que os acidentes de trânsito representam cerca de 23% das mortes por causas externas. O diretor-geral do Consórcio de Saúde dos Municípios da Região Oeste do Paraná, João Gabriel Avance, explicou que as ocorrências de trânsito geralmente são de grande complexidade, exigindo múltiplas equipes de socorro (Samu, Siate, Bombeiros em geral) e resultando em traumas muitas vezes gravíssimos que oneram todo o sistema de saúde que já é saturado.
Rodrigo Daniel Genske, representando o Hospital Universitário (HU) de Cascavel, apresentou dados alarmantes: em 2024, o HU registrou 865 admissões de pacientes vítimas de acidentes de trânsito, com 443 casos até junho de 2025. Estes são, em sua maioria, traumas de “média e alta complexidade”, que causam “superlotação dos leitos, das UTIs e das alas”. Antônio Ruiz, vice-presidente da Associação Comercial e Industrial de Cascavel (Acic), pontuou que a chegada de emergências de trânsito frequentemente faz com que pacientes que aguardam por outros tratamentos retornem à fila.
Leitos ocupados por vítimas de sinistros de trânsito impedem o atendimento de pessoas com outras doenças, um fato esse plenamente possível ser evitado.
Causas e o caminho para a solução
Diversos fatores contribuem para a alta incidência de acidentes em Cascavel, incluindo a imprudência, como embriaguez ao volante, excesso de velocidade, avanço de sinal vermelho. O uso do celular no trânsito foi unanimemente apontado como um “câncer” e um dos “maiores problemas”. A legislação penal de trânsito brasileira, considerada “extremamente fraca” e “branda”, contribui para a sensação de impunidade, pois não permite a prisão preventiva em casos graves como homicídio culposo com fuga, mesmo com provas robustas.
A audiência pública revelou uma forte mobilização e consenso entre os poderes públicos e a sociedade civil de Cascavel pela criação da Dedetran. O presidente do Detran Paraná, Santin Roveda, demonstrou otimismo, afirmando que a “possibilidade [de implantação da delegacia] é 100% real”, dada a boa vontade de todos os envolvidos e a saúde financeira do estado. O Detran se comprometeu a “investir pesado em campanhas de trânsito e educação de trânsito” para mudar a cultura no trânsito de Cascavel, uma ação considerada de “curto e médio prazo” para salvar vidas.
Entre os encaminhamentos da audiência, destacam-se:
• O envio de um ofício com a ata da audiência à Secretaria de Segurança Pública do Paraná, formalizando a demanda pela Dedetran.
• A criação de um grupo de trabalho para acompanhamento e monitoramento da implantação da delegacia, sob a responsabilidade da Comissão de Segurança e Trânsito da Câmara.
• Moções ou requerimentos ao Congresso Nacional para revisão das legislações de trânsito, buscando maior rigidez e punição.
• O estudo da contratação de mais agentes de trânsito pelo município, com a Transitar já programando convocações e um novo concurso.
• O estabelecimento de parcerias de capacitação para policiais civis de Cascavel com a Dedetran de Curitiba, enquanto a delegacia especializada não é implantada.
• A criação de uma política pública de atendimento e suporte a vítimas e famílias de crimes de trânsito, estudando um fluxo específico em parceria com a Secretaria de Saúde.
A criação da Delegacia Especializada em Delitos de Trânsito é vista como uma ferramenta essencial para fortalecer a Polícia Civil, garantir a punição de infratores, inibir condutas de risco, acelerar investigações e, fundamentalmente, reduzir acidentes e mortes, buscando concretizar a “meta de morte zero no trânsito” e oferecer justiça e amparo às famílias.