
Historicamente, nas décadas finais do século passado, os prefeitos decidiam aconselhados por familiares, amigos e sócios, eventualmente misturando obras públicas e interesses particulares, sem cumprir as regras elementares de prioridade, necessidade e legalidade.
Com a Justiça distante e uma imprensa ausente ou dependente, a fiscalização ficava restrita à Câmara Municipal, via de regra dócil ao grupo dominante. Desde a vitória da democracia sobre o golpismo, em 1988, pelo menos nas grandes cidades os políticos eleitos já podiam decidir com base em apoio técnico, cumprindo leis orgânicas instruídas pela Constituição.
A partir daí, se os governantes erram é por sua conta e risco. A Justiça, fortalecida, já pune infratores poderosos, sofrendo em troca ferozes ataques. A imprensa pluralista, a Justiça presente e uma oposição múltipla fiscalizam com rigor. Com isso, os erros podem ser corrigidos e os infratores punidos.
Reféns das máquinas de fake news, as redes sociais introduzem ruídos nessas relações, com falsas acusações disseminadas por bots e haters.
As desinformações iludem usuários manipuláveis, que repassam maciçamente postagens distorcidas por truques de Inteligência Artificial, mas não alteram os fatos. Ao contrário, só criam provas contra si mesmos.
Nem todas as cidades já conseguiram alcançar a excelência técnica na tomada de decisões, mesmo havendo participação popular ampliada, mas Cascavel conseguiu criar um modelo acima da média. Para chegar a isso, entretanto, foi preciso finalizar uma longa novela repleta de reviravoltas.
Aliás, foram muitas as novelas em torno de assuntos importantes que se arrastaram no tempo sem solução por décadas a fio, casos do Teatro Municipal, Praça Wilson Joffre, o surreal aniversário do Município e a expansão descontrolada do perímetro urbano.
A novela do rigor técnico em planejamento municipal começou em 20 de novembro de 1996. Nessa data foi criado o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Cascavel (Ippuvel), iniciativa dos vereadores Nestor Dalmina (proponente), Carlos Beal e José de Jesus Viegas (subscritores).
Dalmina (PT) é arquiteto e empresário da construção civil. Ligado ao PSDB, Carlos Beal é de uma tradicional família de comerciantes. Jesus Viegas (PFL), ginecologista, também foi secretário municipal da Saúde e presidente da Associação Médica. Eles criaram um “monstro”.
Elaborada com a evidente intenção de amarrar o prefeito a critérios técnicos bem definidos, a lei determinava que o Ippuvel teria poderes sobre o Plano Diretor, planejamento urbano, meio ambiente, proposição de leis, opinar sobre impactos urbanos, expedir pareceres e prestar serviços técnicos.
Determinava, portanto, uma viragem completa na gestão municipal autocrática dos tempos da ditadura. O prefeito Fidelcino Tolentino (PMDB), ex-vereador e ex-deputado estadual, sabia que a lei criava um instrumento de controle da gestão municipal e se recusou a sancionar a lei, promulgada pelo presidente da Câmara, Severino Folador.
Vereador em várias legislaturas, Folador (PSDB) se caracterizou por parcerias com vereadores de outros partidos na aprovação de vários projetos de lei. Como estava nos últimos meses de sua segunda gestão, Tolentino fingiu que a lei não existia e a jogou nas mãos do sucessor, Salazar Barreiros (1939–2021), que não cedeu às pressões para cumprir a lei e preferiu ignorá-la.
Boicotada assim por mais um prefeito, a lei praticamente morreu de inanição e o instituto não teve como assumir o protagonismo planejado. Em 2002, já na primeira gestão de Edgar Bueno, que assumiu sem encontrar o Ippuvel estruturado, a herança de descaso com o instituto deixada por Tolentino e Barreiros se manteve.
Sem ações concretas para efetivar o Ippuvel, o vereador Aderbal de Mello (PT) optou por uma tentativa de ressuscitação. Advogado e vereador por várias legislaturas, Mello propôs recriar o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Cascavel como pessoa jurídica com personalidade de direito público, de natureza autárquica, “dotado de autonomia administrativa, técnica e financeira”.
Então vinculado a um partido tido como da esquerda – o PDT – o prefeito Edgar Bueno sancionou a lei, mas progressivamente se distanciou do trabalhismo e ao se aproximar do liberalismo assumiu um papel mais conservador e à direita, continuando a ignorar o revolucionário instituto.
A novela se estendia. Em 2005, após a eleição do prefeito Lísias Tomé (PPS), o Ippuvel continuava uma espécie de fantasma: criado, mas inativo. Por conta disso, novamente vereador, Nestor Dalmina conseguiu aprovar no ano seguinte a lei 4.367, que tentava finalmente dar corpo ao instituto, dispondo sobre suas “finalidades, competências e estrutura orgânica”.
Segundo a nova lei, o Ippuvel teoria sete finalidades, dentre as quais “produzir pesquisas, estudos e análises visando à sistematização, orientação e monitoramento das diretrizes gerais de desenvolvimento e do planejamento estratégico do município”.
Como se não bastasse, iria “desempenhar papel ativo e protagonista no fomento à dinamização socioeconômica, urbana e rural, projetando a cidade e suas potencialidades e otimizando sua atratividade, na perspectiva de consolidar sua vocação como cidade polo”.
O protagonismo do Ippuvel voltou a ser descartado porque o médico Lísias Tomé repetiu o procedimento de Bueno: eleito por um partido de esquerda (o PPS era o novo nome do antigo Partido Comunista Brasileiro), ele sancionou a lei, mas rapidamente se afastou da orientação progressista e deixou o Ippuvel em banho-maria.
A novela se arrastou por mais uma década, até a eleição de Leonaldo Paranhos pelo PSC, partido de centro-direita. Não se esperava muito do PSC, mas Paranhos surpreendeu: ao sancionar em 2017 a lei 6.791, ele matou o nome Ippuvel, mas pôs em seu lugar o IPC (Instituto de Planejamento de Cascavel) e o pôs para funcionar.
Foi quando o protagonismo deu os primeiros sinais, com o IPC tendo na presidência o engenheiro Cletírio Feistler. Ligado ao PPS, ele se manteve como eminência parda na Prefeitura sobretudo ao exercer as funções de controlador geral do Município, cujo título diz muito.
Feistler, na gestão Paranhos, além de comandar o Instituto de Planejamento ficou à frente das secretarias do Meio Ambiente e de Obras. Raros secretários tiveram tanto poder e influência sobre a Prefeitura.
Sofrendo mudanças restritivas em 2018, o instituto não tinha uma inserção efetiva na gestão por falta de normas definindo suas atribuições na prática até 2020, quando um decreto do prefeito Leonaldo Paranhos aprovou o regimento interno do IPC, nessa época sob a presidência de um técnico dos novos tempos e analista de relações internacionais: Tales Riedi Guilherme.
Nada ocorreu por milagre. Algo aconteceu em 2012 que viabilizou o Ippuvel/IPC: a criação da Coordenadoria de Desenvolvimento Econômico Sustentável de Cascavel (Codesc) pelo chamado “poder popular”, com a participação de 65 entidades.
Já com o IPC protagonizando, a Codesc alcançou sua máxima efetividade em 2024, sob a presidência do professor Alci Lúcio Rotta Junior, do Sindilojistas. O antigo “palpitômetro” dos defensores de causas próprias estava sepultado, embora sempre haja tentativas para retomá-lo.
A Codesc tem o objetivo de “propor a formulação de planejamento, priorização, monitoramento, adequação e aprimoramento das políticas públicas de desenvolvimento sustentável e inovação a partir das demandas estabelecidas nas suas câmaras técnicas”.
Para isso, define ações “de acordo com as suas especificidades, reconhecendo o desenvolvimento municipal como um processo dinâmico, multidimensional e participativo em parceria com Poder Público local e a sociedade civil organizada”.
Tudo que o Ippuvel sempre quis e foi ao longo das décadas impedido de concretizar. Como rezava a primeira lei que o criou, cabia-lhe propor a legislação urbanística, ou seja, organizar a cidade. A Codesc está conseguindo.
Em 1917 ainda não se dava importância alguma à Encruzilhada dos Gomes, futura Cascavel, então apenas um ponto de passagem de ervateiros. A Encruzilhada resultou da estrada ervateira aberta em 1895 pela família do coronel Augusto Gomes de Oliveira, ligando Catanduvas a Lopeí. Por isso, “dos Gomes”.
Mais próximo dos antigos traçados estava o antigo pouso tropeiro do Rio Cascavel, também cortado pela estrada dos Gomes, que para construí-la receberam cinco mil alqueires em pagamento, a serviço da obrage Nuñes y Gibaja.
A Rodovia Estratégica, que em breve iria passar pela Encruzilhada dos Gomes em um novo traçado, encontrava-se no mais completo abandono, não oferecendo condições nem mesmo ao tráfego de carroças.
O engenheiro Francisco Natel de Camargo começou as obras da Estratégica em Guarapuava e seguiu em direção à Colônia Mallet (futura Laranjeiras do Sul), onde já havia um pequeno povoado, com estação telegráfica e alguns estabelecimentos comerciais.
Ao avançar pelo interior, constatou que o primeiro traçado da Estrada Estratégica passava pelos afluentes do Rio Iguaçu, tornando as viagens bastante penosas. Não raro os viajantes eram obrigados a acampar junto a atoleiros.
Um novo trajeto foi projetado em função do divisor de águas e é praticamente o mesmo da atual BR-277. Foi o que deu à antes desprezada Encruzilhada dos Gomes seu caráter estratégico, fonte da futura cidade que ali se levantou.
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